Antes da pandemia da Covid – 19 existia uma séria discussão no mundo sobre a privacidade dos dados. Este tema ganhou força, especialmente, depois do escandaloso acesso que a Cambridge Analytics teve à milhares de cadastros do Facebook e usou esse material para manipulação das pessoas tanto na campanha do Brexit, quanto na eleição presidencial americana de 2016. Mas, parece que todos os esforços para criar regras que protegessem os dados dos cidadãos foram colocadas em segundo plano com a luta contra o coronavírus.
Aplicativos de rastreamento tornaram-se uma opção popular para cidadãos e governos no monitoramento da propagação do vírus, mas eles oferecem às empresas acesso sem precedentes aos dados do consumidor. Um exemplo é o COVIDSafe, um aplicativo baixado por mais de quatro milhões de australianos e apoiado pelo governo, que usa Bluetooth para trocar um “aperto de mão digital” com qualquer outro usuário que esteja a menos de um metro e meio de distância. Ainda permite que as autoridades enviem um alerta se o usuário tiver contato com quem testou positivo para COVID-19. Uma iniciativa similar foi usada também em Singapura e é recém-lançada na França.
Já o Facebook está compartilhando dados de localização com pesquisadores da COVID-19 para rastrear e prever focos de crise. Apple e Google – que estavam sendo pressionadas, juntas ao facebook, para cuidar das privacidade dos dados – estão se unindo para criar um aplicativo de rastreamento para os usuários, que será disponibilizado tanto em Android como IOS. O governo do Reino Unido está estudando a adesão a esta tecnologia.
Foi em nome da saúde pública que governos de todo o mundo voltaram as tecnologias de defesa nacional para seus cidadãos. O escritório de segurança interna de Israel reimplantou a tecnologia de combate ao terrorismo para rastrear o movimento de pacientes com COVID-19, usando dados de telefone e cartão de crédito. Na Rússia, as autoridades usaram um software de reconhecimento facial para localizar uma mulher que havia “escapado” da quarentena. Nas estações de trem da Coréia do Sul, as câmeras térmicas monitoram a temperatura do corpo dos viajantes. Os drones no Reino Unido, no Brasil e na China têm sido usados para identificar pessoas que violam os regulamentos de distanciamento social.
À medida que empresas e governos adotam sofisticadas tecnologias de rastreamento para combater o vírus, os defensores da privacidade estão muito preocupados. Até porque não tá muito claro se estes dados serão usados para outros fins.
Paralelo a isso, existe a vulnerabilidade de todos os usuários que, por necessidade ou por falta de conhecimento, acabam cedendo informações valiosas para estas empresas de tecnologia sem saber para que serão usados.
Um exemplo recente é o aplicativo Faceapp, que mobilizou muita gente, com fotos da mudança de gênero. Cerca de um ano, tivemos uma ação parecida no mesmo aplicativo, em que a face podia envelhecer ou rejuvenescer. O aplicativo, que é russo, usa Inteligência Artificial para calcular os rostos e nos dá um impressionante realismo nas montagens. Possivelmente, a cada viralização eles fazem teste em grande escala e aprimoram a própria tecnologia. Além disso, ao utilizar o app você autoriza que a empresa armazene nos servidores dela suas as informações privadas e ainda a autoriza a cedê-las a terceiros.
No mundo físico também existe a preocupação com a privacidade dos dados. Nos últimos anos, quando vamos a uma farmácia, por exemplo, eles perguntam o CPF para acionar o cadastro e assim conceder descontos. Para quem toma medicamento contínuo e caro, o desconto é importante, mas o que as farmácias fazem com aquele histórico que compras? E se um dia eles decidirem vender este histórico para terceiros? Será que essas informações podem ser utilizadas contra mim? Será que um plano de saúde, por exemplo, pode me cobrar mais caro porque no meu histórico de compras em farmácia mostra que uso muito descongestionante nasal, logo posso ter dificuldades respiratórias ou precisar de um tratamento caro de alergia?
Hoje não temos legislação clara que nos proteja desse tipo abordagem, mas uma lei já foi aprovada e entrará em vigor daqui a pouco mais de dois meses. A Lei Geral de Proteção de Dados regulamentará qualquer atividade que envolva utilização de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou jurídica, no território nacional ou em países onde estejam localizados os dados. Ela não resolve todas as questões que vamos enfrentar, ainda teremos muitas pautas sobre privacidade versus inovação, mas, no contexto atual, é um passo importante para nossa proteção individual.